Publicado em 1701/2025 às 17h29
O TIRO DE GUERRA
A cidade ainda era muito pequena, pacata, de gente simples e inventiva. Estava sob regime e vigilância dos militares, que instituiu até um tiro de guerra. Refiro-me a uma bela construção de cimento e alvenaria, um edifício suntuoso, cuja finalidade era deter os supostos terroristas de então.
Havia, inclusive, um cartaz afixado na parede da delegacia, além dos inúmeros espalhados pela cidade. Colados em postes, muros e outros espaços de grande visibilidade, expunham nomes e rostos dos procurados, seguidos do exasperado alerta sobre os perigos que representavam ao Estado. Como se não bastasse, os referidos cartazes incentivavam, através da oferta de vultosas recompensas, a delação que levasse à captura dos “inimigos” da pátria.
Foi a primeira vez que ouvi falar em delação premiada, apelidada de recompensa, ainda na minha segunda infância. Vale esclarecer que, na época, essa tal delação era informal, portanto, sem previsão legal.
O supra mencionado prédio tinha uma estética bonita, mas a sua construção ensejou uma escalada de medo e pavor aos moradores locais. Diuturnamente víamos os movimentos das tropas e ouvíamos os estrondos dos pavorosos coturnos. Não sei o que mais amedrontava a população, se o superestimado perigo dos terroristas, ou a ostensiva ameaça dos militares.
O povo, na verdade, não tinha a menor ideia a propósito de terrorismo e terrorista, pois nunca os vira em lugar algum. Soldados, esses sim, ali haviam muitos, ao passo que “terroristas” mesmo, povoavam apenas a envenenada imaginação. Sabia-se, por boca dos outros, que terroristas significavam comunistas que se opunham ao sagrado sacramento do matrimonio, comiam criancinhas, tomavam os bens e os pertences das pessoas. Não eram coisa de Deus! Mas, nós mesmos, jamais vimos, no cotidiano, consubstanciada tal aleivosia.
Corria o boato de que os soldados, que vieram proteger o povo e o município, interrogavam as pessoas por meio de métodos truculentos e perguntas comprometedoras e ameaçadoras. Camponês, gente simples da cidade, pessoas alheias à rígida doutrina militar; esse era o perfil dos interrogados. Contava-se que o interrogatório era acompanhado de muita crueldade.
Arrancavam-se unhas com alicate, queimavam-se corpos com ferro quente, tosquiavam-se a pele com baga de cigarro aceso e outras práticas repulsivas e abomináveis. Essa prática era tão corriqueira, que se tornou motivo dos sussurros populares, sob o turvo véu da censura estatal.
A rigidez do sistema era tal que, certa vez, um garoto de 15 foi submetido publicamente à humilhação imposta pelos militares. Por ele ostentar uma bela cabeleira blackpower foi instado a cortar o cabelo ornamental, com uma máquina regulada no número zero. Ele saiu assombrado da barbearia e nunca mais quis se encontrar com um milica. Por essas e outras, o povo vivia assustado, sobressaltado e inseguro.
Mas, num determinado dia, noticiou-se pela cidade o assassinato de alguns terroristas, inclusive o mais procurado. Desde então, desistiram do tiro de guerra e os soldados foram embora, deixando a cidade respirar o bom ar da liberdade. Não me recordo de tiros ou tiroteios na minha cidade, mas me lembro da guerra, guerra de nervos, guerra psicológica. Muitos camponeses enfurnaram-se em suas casas no sertão, para nunca mais botarem os pés na civilização sequer para comprar remédio nas farmácias, querosene para o candeeiro ou para registrarem seus filhos nos cartórios.
Somente aos poucos o povo voltou a ocupar as ruas, os jovens a se reunirem nas praças e as crianças a frequentarem os parques infantis nos jardins. Não se sabe ao certo quem defendia o povo naquela cidade, se os soldados ou os comunistas, porque ao povo mesmo nada foi bem explicado.
Antonio Rocha de Souza