Publicado em 29/07/2024 às 15h28

Por Antônio Rocha Souza.
Por Antonio Rocha.

CARTA AO SENHOR CERRADO. 

Caríssimo amigo Cerrado,

Escrevo-lhe esta carta na esperança de encontrá-lo bem.  Aliás, encontrá-lo bem é força do hábito. Eu quero mesmo é saber de você e pela sua boca, as notícias que correm por cá a seu respeito. Eu convivi muito com você ainda nos velhos e bons tempos, e me recordo que detinha uma saúde de ferro, esbanjando simpatia e alegria pra todo quanto era lado.  Também me lembro como você era dadivoso e generoso para com a fauna e flora e, enfim, com todos que constituíam o seu interior. Era uma casa de portas abertas e sem dono sendo, assim, de todo mundo. Ali você alimentava a todos com frutos, água e mel. Não só gente, mas bichos, abelhas e insetos. Nada morria à míngua ao seu redor.

Mas, de uns tempos pra cá, não ouço boas notícias sobre você. Não sei se são fatos ou boatos.  Você sabe, não é…? Coisas de jornais e da televisão. Claro! Nesse campo nem tudo se deve tomar como certo…  Mas, vindas da boca dos doutores e da ciência, a gente tende a dar credito e confiança. Além dos doutos, eu escuto também das bocas das raizeiras, dos homens e mulheres dos feixes, e de tudo quanto é jeraizeiros, que a sua vida não é mais a mesma. Confesso que isso me preocupa, razão pela qual lhe escrevo.

Sei que o amigo Cerrado é um cara de muitas histórias e de muitas lidas. Que vem de longe e, se não me engano, é neto do tempo e filho da terra. E que sempre teve uma vida simples e sóbria. Também conheço os seus irmãos que, por sinal, jogam no mesmo time chamado bioma. Recordo-me dos nomes um por um: Amazônia, caatinga, pantanal e pampa. Entretanto, dentre eles, você é o mais velho e o mais rico em biodiversidade do planeta. Bom… pelo menos era. Agora que andou arrumando novas e estranhas amizades e se ajeitando com gente graúda e de patente estrangeira, já não posso afirmar. Eu não sei se ainda lhe reconheço… Sei que tinha os pés, digo raízes, cravadas no fundo das águas e as mãos suspensas no ar, prontas pra doar todos os frutos do que o homem precisa, por todos esses séculos de vida.

Sim, você era dadivoso e generoso até quando chorava de alegria. Dos seus olhos corriam rios de água irrigando veredas e plantações, verdejando campos e prados. Carregava sempre o verde suave da esperança como que ornamentos. Quer na seca, quer nas águas, atravessava as estações com o mesmo bom humor. Também sei das promessas que, há tempo, recebera. Igualmente, sei das propostas indecorosas, às quais você deixou-se seduzir. Sim, claro! Prometeram mudar-lhe as roupas e a aparência, o sorriso e a sua essência. Trocaram os seus múltiplos e lindos tons pelo monopólio de uma cor só. Insistiram em colocar na sua cabeça a coroa da “modernagem.” E aos seus pés os tons de plantações alheias à sua natureza, dizendo agradar-lhe.

Foi assim que os homens das jóias e do dinheiro, da técnica e do capital, da lábia e da inteligência artificial, foram fazendo-lhe a cabeça. Eles roeram os seus pés e minaram a sua força. E você, meu caro Cerrado, que tinha uma caixa d’água sob os seus pés e coloria suas copas de pássaros, insetos e bichos, foi se empalidecendo, empalidecendo, até se tornar esqueleto.

Tudo porque deixasse se seduzir por uma dupla de palavras: Vaidade e Poder. Hoje, caro Cerrado, você é quase um franco desconhecido. A sua aparência não é mais a mesma, as suas mãos são trêmulas e não se abrem mais para nos dar os frutos que lhe provêm. Os seus olhos não choram mais águas cristalinas, mas sim dejetos e veneno, com os quais envenenaram a você e a nós.

Por Antonio Rocha. 30/06/24.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.