Publicado em 09/11/2024 às 08h13
Por Antonio Rocha
JÚLIO: O CONSTRUTOR DE CASAS E SONHOS
Embora nunca tenha tido algum laudo que confirmasse, Júlio era muito popular e conhecido por toda a redondeza como “Júlio doido.” Tal expressão, por si só, é dolorosa e perenizadora do sofrimento que leva ao desprezo. Uma alcunha carregada de preconceitos que, geralmente, remete à exclusão e ao bullying, verbalizados no dito: “não dê bola para o que ele fala; pois, é um louco…!”
O personagem que trago para a reflexão de hoje é uma ilustre personalidade que, como tantas outras portadoras de algum transtorno mental, encontra-se também inserido no imaginário da sociedade correntinense. O próprio era um mestre, construtor de casas e de sonhos. Ele chegou à cidade de Correntina num de repente, sem que quase ninguém dele desse por fé. Um moço astuto, matreiro, excepcionalmente simpático. Além do que, era Júlio um homem esbelto e elegante, que gostava de tratar as pessoas com a expressão do tipo: “oh minha beleza…!” Um verdadeiro brincalhão, hábil, ligeiro como o relâmpago.
Embora Júlio sofresse de grave enfermidade mental, era do seu feitio pagar o “prato que comia.” E, para isso, e a exemplo de tantos outros companheiros de infortúnio que transitavam por Correntina, também ele cortava, carregava e vendia lenhas pela cidade, percorrendo casa por casa. E, se comprasse fiado, ou pedisse algum dinheiro emprestado, no tempo aprazado cumpria o acordo, com a precisão de um relógio britânico. Sim, devolvia, tim tim por tim tim, o valor combinado, demonstrando o seu elevado caráter.
Outra qualidade do Júlio, que corria pela boca do povo, era a sua habilidade na arte de construtor. Segundo inúmeras testemunhas, o próprio construiu algumas das casas onde chegou a residir. Provavelmente devido à suposta condição de sanidade, ele não permanecia por muito tempo nas suas habitações. Além do mais, Júlio também costumava cantar com voz impostada e afinada, diante de alguma platéia curiosa. Do prato e da colher que usava, transformava em instrumentos musicais, ao modo de pandeiro e reco-reco. Assim, eufórico, entoava algumas quadras ou canções, principalmente a composição de Ataulfo Alves: “Ai que saudades de Amélia.” Fazia isso, normalmente quando estimulado por um gole de pinga. Em razão disso, às vezes Júlio cedia a alguns picos de agressividade ou ousadias moralmente impróprias, principalmente quando encurralado ou acossado por alguns abusadores da liberdade.
Com tantas habilidades assim, não raras vezes indaguei a mim mesmo sobre o que teria levado Júlio àquela triste situação. Tive como resposta, a corriqueira afirmação de que a sua loucura resultava de um amor não correspondido, uma doze excessiva de bem-querer! Ou seja, uma paixão fulminante e incontida, daquelas que fazem a mente entorpecer, o matou mentalmente. Acontece que, nos momentos de plena lucidez, Júlio fazia emergir da própria alma, sua genial criatividade, todo o seu talento e polidez dos bons modos. Devido a este perfil, Júlio se imortalizou na memória coletiva dos Correntinenses. E, embora não fosse natural da cidade, vivera como se assim o fosse, agraciando-nos com o seu humor e sua inventividade.