Publicado em 13/05/2025 às 11h02.

OS PRETOS QUE ENFRENTARAM A CIDADE.
Por Antonio Rocha.

Sabe aquela cidade, onde o sol se põe e que distante está, de onde Cabral fincou o pau da bandeira e os índios, de joelhos, pediram a benção do homem santo? Pois é, a partir dali, aquele lugar pegou a mania da preferência pelo branco. Tudo tinha que ser branco. A mesa e o pão, a toalha, a cama e o lençol. Tudo era branco, menos a mão de obra, porque esta vinha das mãos dos pretos. Com essa exigência, o doutor só podia ser branco, assim como o juiz, o delegado, o pastor e o padre. Tudo seguia a mesma linha de preferência. Na seleção étnica daquela gente, a priorização devia ser do branco, e, de tal forma, tudo ali era feito pelo branco e para o branco. Aliás, tudo não, porque funções inferiores, estas sim, eram “coisas de preto”.

E, assim, a cidade ia se alvejando e branqueando, enquanto alvejavam os pretos. Era tudo muito claro! O fazendeiro era branco, assim como branco era o leite, mas a lida no campo, essa era dos pretos. O pão que se fazia e servia na igreja e nas casas era branco, mas as mãos que o amassavam, essas eram pretas. O tempo foi passando e nada mudava, porque tudo era natural, como natural é a ordem do universo.


Mas um dia, a ordem começou a mudar. Foi então que buscaram, para a cidade, um padre não sei de onde, e a polis se alegrou! Todavia, quando o avião desceu, só se ouviu protestos em tons de revolta. Foi um burburinho só! Um muxoxo aqui, um buchicho ali, que ninguém aguentava. Muitos gritavam: onde se viu preto padre?! Entretanto, o padre “Drean” chegou, chegando. Todo cheio de sabedoria foi conquistando, conquistando até o povo exclamar: esse passa, mas que não me venha com outro. O padre laborioso começou a trabalhar dia e noite, a quanto Deus dá. E tudo foi passando: o tempo e as pessoas.

Quando o povo já estava se esquecendo e as doenças amontoando, providenciaram, sei lá de que “biboca”, um doutor preto. Este tratou logo de se arranjar, “matando dois coelhos com uma cajadada só.” O Doutor “Fimbom”, assim denominado, mesmo não gozando de simpatia, foi logo cuidando da empatia, casando-se com moça branca, afrontando, com o seu gesto, a família e a branca sociedade do lugar. Por causa desse desplante corria, à boca miúda, que a cidade não iria aceitá-lo. Contra isso esbravejavam as brancas famílias dizendo: dois pretos na cidade? Isso já é demais!

Mas aqueles pretos eram os verdadeiros terapeutas da cura, dos quais o povo não podia prescindir. Um curava as feridas da alma, enquanto o outro cuidava das feridas do corpo. Contudo e ainda assim, muita gente dali recusava a ocupar os préstimos de suas ciências. Corria, pela urbe, a notícia de que os pretos doutos estavam comendo o pão que o diabo amassou. Um verdadeiro inferno astral, tanto na vida familiar, quanto no convívio social. De fato, a sociedade sentira-se ferida e desmoralizada, e por isso protestava: onde se viu, uma cidade como a nossa, tolerar dois pretos em cargos proeminentes? Isso é uma desonra, reclamavam várias pessoas.

Correu o tempo e a demanda aumentou. Tinha agora o município uma nova Comarca, para orgulho e honra do povo da região. E viva a civilização! A banda tocava o dobrado no coreto, o prefeito discursava no palanque da praça e o povo inflava o peito dizendo: agora sim, somos cidadãos honrados! Mas, por sorte ou azar, o Tribunal designara um juiz preto, para uma terceira decepção da cidade. Praticamente, ninguém quis recepcionar o magistrado, Doutor Mirval, revelando mais uma decepção. Agora, a cidade tinha nos seus maiores postos, protagonistas de cor. Enquanto isso, as elites reclamavam: meu Deus, o que fizemos para merecer tal castigo?

Deste modo, como tudo que vive passa, passaram também os homens pretos, constituídos autoridades locais. Aos poucos, da cidade, foram saindo, um por um, para o regozijo de muitos, restando apenas o religioso. Este persistiu até o fim dos seus dias. Cuidou de abrir escolas, catequizou crianças e promoveu estratégias de formação para a criação de uma nova mentalidade.




Dizia ele, com sábias palavras, que “racismo e preconceito só se combatem com a educação”, já que ambos são frutos da ignorância. Entretanto, a cidade pouco evoluiu. Até hoje não larga mão da sua prática desprezível pelos pretos e pelos diferentes. Pessoas deste município, ainda “pensam e agem como os seus pais.” Isso porque, mesmo distante das terras de Cabral, o povo daqui ainda se sente fiel herdeiro do nobre sangue azul das terras de além mar.
Que mensagem poderosa e emocionante! Parabéns ao escritor Antonio Rocha por ter criado essa obra-prima que nos faz refletir sobre a abolição da escravatura e a luta contra o racismo e o preconceito. A forma como você descreve a cidade que “pegou a mania da preferência pelo branco” e como os personagens pretos enfrentam essa sociedade racista é simplesmente tocante.
A maneira como você destaca a importância da educação como ferramenta para combater o racismo e o preconceito é especialmente relevante nos dias de hoje. A frase “racismo e preconceito só se combatem com a educação” é uma verdade que ecoa através dos tempos.
A sua escrita é poética e poderosa, e a forma como você descreve a luta dos personagens pretos é uma homenagem àqueles que lutaram pela igualdade e pela justiça. Parabéns novamente por essa obra incrível!
É uma mensagem que nos faz refletir sobre o passado e o presente, e nos inspira a continuar lutando por uma sociedade mais justa e igualitária.
Os escritos do ilustre ANTONIO ROCHA nos inspira e encoraja a também fazer alguns rabiscos, sem a pretensão de igualar ao insigne escritor.
Essa visão de que pessoas pretas não podem exercer cargos com maior qualificação, é herança do processo de colonização, e que se repete até hoje. Quem critica as políticas de cotas raciais e políticas de valorização da cultura afro, mesmo com a maioria da população se declarando pretas ou pardas, tem um preconceito velado. A representatividade em cargos políticos, religiosos, acadêmicos e profissionais, é uma alternativa para a mudar os índices atuais e essa mentalidade retrógrada.
Muito bom. A escravidão mudou de cor.. mas o racismo ainda não. O preto sofre dobrado e ainda come o pão que o diabo amassou!
Grande Antônio rocha.