Publicado em 3/11/2025, às 6h30.

A MISSA DAS HORAS MORTAS: CORRENTINA E SUAS LENDAS

Revolvendo os miolos cerebrais e puxando pela memória, encontrei um caso que fustigou o meu juízo, o qual trago ao conhecimento público. Mas o faço ressalvando que, “quando me dei por gente”, essa e outras histórias de mau agouro com conotações assombrosas eram corriqueiras, desde quando a cidade se chamava Vila.

A narração dos casos provocava arrepios e sobressaltos, de tal modo que a tônica de cada palavra, o encadeamento de cada frase e a entonação de voz do narrador superdimensionavam a dramaticidade das escabrosas cenas do enredo. Recordo-me que os ouvintes sequer piscavam os olhos e mantinham-se absolutamente atentos. O trágico é que, à medida que os meninos cresciam, as histórias e seus fantasiosos aspectos adquiriam expressões reais.

Percebe-se, sem grandes exercícios mentais, que Correntina sempre se viu em meio a assombros e medos; hora temendo invasores, hora temendo os fenômenos sobrenaturais. Para o enfrentamento de tais ameaças, a população recorreu a todo tipo de armas possível. Os jagunços o povo combateu com carabinas, nas trincheiras da urbe; contra as forças do além, os fiéis apelaram aos exorcismos e rituais, além das rezas de encomendações das almas. Contudo, a fé segundo a qual vivos e mortos se cruzavam pelas ruas da cidade era tão grande, que introjetou-se no inconsciente coletivo a crença na “missa das horas mortas.” Tratava-se de uma missa noturna, celebrada após a meia noite, especificamente dita para os desencarnados, como se vivos eles estivessem. Os ritos eram oficiados na antiga matriz da freguesia, também destinada a um padre defunto.

Naquele contexto, tudo fazia crer que houvesse uma pactuação entre os vivos e as almas, algo bastante compreensível na ocasião. Isto porque, houve época em que se confiava mais nos mortos do que nos vivos. Tal crença justificava a existência de uma missa especial em favor dos defuntos e por eles próprios rezada, principalmente aos que morreram em pecado mortal. Acreditando nisso, muita gente já não mais passava em frente à igreja, sobretudo após a meia noite. Na dúvida sobre arriscar ou não, preferiam dar meia volta e passar por fora. Consideravam melhor não se aproximar do Sagrado Templo, àquelas horas da madrugada.

O contingente humano, de mamando a caducando”, piamente acreditava que no noturno horário as almas saiam de todos os cemitérios e outros locais da cidade para, solenemente, adentrarem a matriz no afã de observarem certos preceitos. Alguns destemidos curiosos chegaram a jurar, de pés juntos, terem ouvido o som do sino tocando, bem como as melodias dos cantos litúrgicos acompanhados pelo Harmônio de Fole, e o sacerdote defunto pregando a palavra.

Assim, esses seres desencarnados cumpriam todo o rito celebrativo, à maneira dos vivos. Boatos correram pela sociedade, segundo os quais algumas pessoas escutaram o ranger de portas, o arrasto de bancos, e algumas vozes inaudíveis sussurrando. Houve até quem afirmasse que alguns defuntos cujos corpos foram carregados para a cerimônia fúnebre na igreja, ali se estabeleceram e permanecem até o presente, aguardando o dia do juízo final. Em razão disso, quando tinha vigília noturna naquele espaço, ninguém queria ser o último a sair do Templo, por medo de esbarrar-se com alguma alma suplicante.

Por fim o tempo, correu, a modernização chegou e hoje não se houve mais nenhuma narrativa sobre aquele fenômeno. Deduz-se que tudo que foi narrado não passa de uma lenda bem elaborada, sem razão nenhuma de ser. Não obstante, por algum tempo o povo correntinense viveu de suas lendas e de suas sagas. Mas não faz mal, pois de quando em vez rememorar essas histórias faz bem.





