Publicado em 09/01/2025 às 09h50.

Foto de Um a um, a filha de Raposa.

Por Antonio Rocha.

“UM A UM”, A FILHA DE RAPOSA.

Inestimáveis leitora e leitor,
Por intermédio do presente ensaio, pretendo fazer o resgate de uma das mais inusitadas personalidades que povoaram o universo cultural de Correntina. Não por acaso, acordei na manhã de hoje lembrando-me de uma menina apelidada de “Um a um.” A conheci ainda muito nova e, no entanto, aos poucos ela foi crescendo, crescendo, até se transformar numa menina-moça. Posteriormente, embora moça já feita, “Um a um” tinha o juízo, os gestos e os modos de uma criança. Em razão da deformidade de seus pés, andava pelas ruas trocando as pernas, como se estivesse embriagada. Ignora-se quaisquer informações ou detalhes a respeito da enfermidade da qual era acometida. Sabe-se, apenas, que na sua alma havia somente inocência ou pureza, enquanto suas ações e atitudes eram visivelmente pueris. Tratava-se de um ser humano alegre e espontaneamente brincalhão. Costumava responder a toda e qualquer pergunta, sempre com a mesma resposta: “um a um”. Daí que vem a sua assinatura ou o seu cognome.

Por causa de sua limitação fonética, que se aproximava da mudez, as crianças e os adolescentes gostavam de interagir com ela exclusivamente para lhe indagar, em tom de brincadeira: “Ei, Muda! Quanto foi o jogo hoje?” A que ela respondia balbuciando o notório som: “um a um.” Ao ouvir a resposta, as crianças caiam em gargalhadas, repetindo exaustivamente a mesma pergunta, até a moça se irritar. Muitas vezes, para livrar-se dessa perturbação, ela atirava-lhes pedras ou qualquer coisa que tivesse à mão. Entretanto, “Um a um” era uma criatura inofensiva e pura. Sua mãe era Raimunda Raposa, uma portadora de grave doença mental, que perambulava ali pela cidade.

Apesar de ter uma mãe natural, “Um a um” tinha uma segunda mãe, conhecida por Rosinha Cubú. Rosinha era uma beata negra, rezadeira e bastante solicitada por toda Correntina, para o oficio de rezas. Rezava contra “espinhela caída”, “mau olhado”, “quebranto”, “enxaqueca” e outros males de forças desconhecidas. Cubú sabia ler e escrever com desenvoltura e, por ser dotada de tal habilidade, ganhava dinheiro lendo e escrevendo cartas para os vizinhos e outros interessados. Residia à Rua Felix de Araújo e assumia, gratuitamente para si, a missão de cuidar, educar e zelar de “Um a um”, desde esta bem pequena.

Vez ou outra, Raimunda, mesmo mentalmente perturbada, reaparecia como relâmpago na cidade, com o objetivo de cuidar de sua filha. Era um desatino completo, isto porque ela já chegava botando bronca e dando ordens para Rosinha, como se a mesma fosse sua serviçal. Reclamava sempre da referida tutora, dizendo que a filha estava mal cuidada. Assim agarrava a sua cria e a levava para o rio a fim de lhe dar banho. Catava-lhe piolhos quando havia, penteava-lhe os cabelos, enchia-lhe a boca de baton e lhe vestia roupas novas. E, depois de exortar Rosinha a cuidar bem da filha, Raimunda desaparecia repentinamente, sumindo da cidade por um bom tempo. Repentinamente, Raimunda reaparecia sem mais nem menos, aprontando todo fuzuê que lhe fosse possível. Sacudia toda a Rua Felix de Araújo, trazendo a vizinhança para fora, ao som de É Raimunda! É Raimunda! Ela veio visitar a filha!

De fato, Raimunda passava-se por celebridade, em missão de visita aos seus súditos. Todos a temiam e a reverenciavam. Contudo, Rosinha permanecia serena e segura, sempre com uma postura dialogal. Ela sabia enfrentar, conversar e dobrar Raimunda Raposa. No fundo, Raimunda, não obstante o seu grave transtorno mental, sabia que sua filha estava em boas mãos. Após conferir a situação de sua filha, partia novamente para outras direções, deixando “Um a um” sob a guarda da Rosinha. Diante de tamanha generosidade, sempre me perguntei: o que levaria uma mulher negra, solteira e pobre, a assumir a guarda de uma menina doente, limitada, atrofiada e filha de mulher acometida de grave transtorno mental?

Texto de Antonio Rocha.

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