Publicado em 08/09/2024 às 06h10

Por Antonio Rocha.

AS MULHERES DOS FEIXES.

A década era a de setenta; também as suas cenas, os seus personagens e o seu sistema e ideologias naturalizadoras. Ali se via ao vivo e a cores, personagens marcadas pelas vicissitudes da vida. Umas eram viúvas, outras eram separadas e algumas ainda no seu pleno vigor da mocidade. Todas elas trilhando no mesmo caminho, na mesma estrada, dobrando ruas, cruzando esquinas com as mesmas necessidades e os mesmos apelos de sobrevivência.

Bem assim e por todos os lados… Do caminho da Extrema ao caminho do Barrocão; da ladeira de Constantino ao caminho do Estreito; da saída pras Taboas ao caminho do Mané Roxo. De tudo quanto era canto e pra todos os rumos, via-se mulheres paramentadas, subindo a ladeira e rumando pela estrada num rito de sobrevivência.

Elas portavam machados, facões e rodilhas de pano, enquanto pisavam um caminho de poeira encardida, à procura dos galhos secos de árvores caídas à beira das estradas, ou em qualquer propriedade alheia. Onde houvesse algum pau de lenha, elas cortavam, empilhavam, amarravam e jogavam o feixe na cabeça, voltando pra casa ladeira abaixo, por vários e penosos quilômetros.

Assim, era a lida daquelas despossuídas. Elas buscavam lenha; e na lenha o fogo; no fogo a luz; e na luz o calor e a esperança de pão, mesmo que minguado, posto na mesa. Saiam sempre de duas em duas, como faziam os discípulos de Jesus. Entretanto, em outras ocasiões, tais mulheres agrupavam-se com outras companheiras, desvencilhando-se dos muitos apetrechos, pra não pesar no seu desmilinguido corpo. Raramente carregavam água na cabaça ou algo pra comer, agindo sempre às pressas, como as tais parteiras do Egito. E se encontrassem algum morador de boa vontade, pediam-lhe água pra beber e alguma bobagem qualquer como um pedaço de rapadura ou um taco de beiju, para repor as forças e enganar o estômago.

E assim, se tivessem alguma sorte, as lenhadoras corriam o risco de encontrar algum resto de safra, alguma coisa como uma raiz de mandioca enterrada no chão, ou alguma abóbora perdida na rama. Nesse caso, a colheita se tornava pródiga, como no espírito das leis hebraicas. E assim, pelas estradas, elas iam socializando as suas vidas, cantarolando os seus cantos, entoando os seus lamentos, bem como as suas dores e desilusões. À noite em casa, dar-se-ia a celebração da coleta, as histórias de encontros e desencontros, e a divisão dos frutos à beira de um fogão a lenha.

Porém se o inverno chegasse, era imperativo a trocava da busca de lenha, pela coleta dos dons do serrado, tais como: o cajuzinho, o puçá, o cascudo, o bacupari, o pequi e tantos outros nativos frutos, da dadivosa natureza dos gerais. No final do dia, se via por todas as saídas da cidade, inúmeras senhoras com seus vestidos rotos e seus feixes de lenha sobre a cabeça, descendo a ladeira e adentrando a cidade, como que um exército espartano, voltando das trincheiras da guerra. Sim. A guerra do ganhar o pão!

De fato, elas eram todas guerreiras, portando machados fincados nos feixes; facão à mão e pescoço firme, equilibrando o peso do combustível vegetal. Se por um lado aquela cena demonstrava a bravura da força feminina; por outro, denunciava a desassistência do Estado e a brutal desigualdade social daquele lugar. Espantoso é que, tudo aquilo era recorrente, como natural é a corrida do rio pra o mar.

 04/07/21 Antonio Rocha

 

 

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