Publicado em 17/11/2021 às 14h11
Hélverton Baiano
Ali ninguém gostava de pilheriar sabença do povo da roça, mas Vera Coco fazia ouvidos moucos aos ensinamentos. O moço não se apoquentava, apesar de já ter ouvido muitos casos a respeito de tudo quanto é maledicência e latomias deste e de outros mundos.
Esse negócio de livuzia, de pé-de-garrafa, de pé-de-vento, de lobisomem, disso e daquilo, para ele era tudo imaginação de gente medrosa.
Desfeitava quando ouvia casos de livuzia. Apreciava, no entanto, quando nas rodadas dos amigos ouvia o acontecido com Seo João de Margarida, homem distinto na cidade. Inclinações as mais bonitas possíveis, nunca fazia mal a viv’alma deste mundo e já tinha pra mais de trezentos afilhados, resultado da benquerência.
Certa feita, adoeceu. De noitinha começava a botar sangue pelo nariz e seguia noite adentro com essa desgraceira. Não havia com o que estancar. Já fazia bem um mês que vinha com aquilo. Acudir, ele acudiu com farmacêutico e remédios. Quando chegou Sonrisal por lá, recomendaram. O homem colocou um tablete na boca e o troço engastalhou na goela, que foi preciso uma moringa d’água para dissolvê-lo.
Até que chegou o dia em que Dorim Rezador deu sumiço naquela sangueira e Seo João de Margarida se restabeleceu. Dali para a frente nunca mais conseguiu dormir um tiquinho de cochilo. Ficava zanzando a noite toda nas ruas da cidade, com seu camisolão preto, mais parecendo um bicho mal encarado. Uns diziam que era porque Dorim tinha partes com o demo. Outros usavam o exemplo para aumentar a crendice.
Mesmo gostando de ouvir o causo, porque conhecia Seo João de Margarida, Vera Coco não se atinava. Esses dias aconteceu um caso com seu amigo Demola Pau de Sebo, mas Vera achava que era invenção, coisa de medroso.
– Coisa do outro mundo o quê? Sou besta não!
Para os dali, Vera Coco era um desarranjado, apesar do esforço, das insistências e advertências de Dona Preta, sua mãe. Rapazote desleixado até não poder mais, vivia sempre com trapulinagens. Além de não consentir conselho, não se apegava nem um pouquinho às coisas sérias. Vivia de pegar passarinho, roubar galinhas nos quintais alheios, afanar dinheiro dos bêbados, jogar bola e apanhar barriguda pra descambar rio abaixo com sua turma. Era de pouca confiança no meio do povo e ficava enfezado quando sua mãe começava a lenga-lenga de Santo, de Deus, de reza.
– Sossega, véia!, dizia.
Não adiantavam os conselhos por mais que Dona Preta os fazia. Vera Coco estava insensível para os mandados divinos. A satisfação dele era virada para coisas da terra e da malandragem.
Certo domingo, tudo combinado com a turma para pegar barriguda na roça de Ziquiel das Prechedas, que ficava no ponto exato que dava para descambar rio abaixo com as toras da madeira fofa. Aproveitavam também para roubar manga e melancia.
Lá se foi a meninada numa algazarra sem medida. No mato, cada qual procurou seu rumo, uns para um lado e outros para o outro. Cada um procurava arranjar a barriguda melhor, porque quem ficasse com a pior recebia caçoada.
Vera Coco embiricou pro rumo do emaranhado, mata espinhosa e ranhenta. De quando em vez, engarranchava-se numa moita de carrapicho e se furava todo, justificando o esforço por uma boa barriguda. No breu enfurnado da mata quase virgem, os companheiros sumiam da vista. De repente, Vera Coco garrou lembrança das encomendas da mãe e da apoquentação dos amigos.
A lembrança garrou sem soltar e vai que ele se desespera. Bastou chegar ao pé de uma enorme barriguda, um sopro de vento congelou-lhe até os últimos pensamentos. Seu corpo tremia mais que galho novo de pau pereira. Assomou-lhe um medo medonho. Quis gritar e a voz parecia socada pra dentro. O pensamento já não atinava com quase nada e seus olhos eram os espeques do corpo. Olhou para a barriguda e dela saía uma figura estranha, estranhíssima, com uma perna só, o pé redondo, um olho enfincado no meio da testa, mais vermelha que urucum, a boca em cruz jorrando fogo e, no lugar dos braços, havia três espetos afiados e longos que apontavam para ele.
Vera Coco procurou alento, ficou tonto e, se esquecendo de que não tinha medo, conseguiu no âmago um grito desesperado, caiu desmaiado, feito jiló maduro. Quando o pé-de-garrafa se preparava para comê-lo, chegaram os colegas e a latomia soverteu, entrando novamente na árvore de onde havia saído. Luiz de Queno, que chegou primeiro, ainda conseguiu vê-la.
Impressiona-me a sensibilidade do escritor para narrar a história, o conhecimento dos fatos, das palavras usuais e dos personagens reais que deram vidas aos personagens fictícios. O escrito parece um filme televisivo.