Publicado em 16/12/2024 às 21h16

Foto de Dona Cebola.

Por Antonio Rocha – DONA “CEBOLA”: A DEFENSORA DA SOCIEDADE DO TEMPO LIVRE.

Caros leitores e leitoras,

A personagem trazida à memória pelo presente artigo é ninguém mais, ninguém menos que “Cebola.” Cebola, cujo nome verdadeiro não se tem notícia, foi a alcunha que lhe conferiram. Essa mulher não era hippie nem anarquista, tampouco uma militante antagônica ao sistema da época. Tratava-se de alguém Sui generis, desapegada das coisas e, inconscientemente , minimalista. Na realidade, “Cebola” foi, provavelmente, a primeira pessoa da região a espelhar uma sociedade do tempo livre, ou seja, do ócio.

Sem pronunciar uma palavra, sem escrever uma linha sequer, sem editar um livro e jamais atrair a atenção da mídia, ela personificou uma nova filosofia. Na forma de um protesto silencioso alinhado à máxima evangélica: “Quem tem ouvidos, que ouça!; quem tem olhos, que veja!.” A cidade, de ponta-a-ponta, definia “Cebola” como doente mental, a despeito da ausência de qualquer relatório psiquiatra que atestasse tal deficiência. Na ocasião, ouvi sussurros sugerindo que se chamava Maria, porém essas especulações nunca se confirmaram. O certo era uma mulher de estatura mediana, pele clara, cabelos lisos, evidentemente mal cuidados. Ostentava pelos salientes sobre boca, em forma de bigode um tanto rebelde, e seus olhos tipicamente gateados.

A senhora “Cebola” percorria toda a cidade, desde o amanhecer até o anoitecer. Percorrer é o modo de dizer, porque efetivamente ela não andava longas distâncias. Habituou-se a pausar em alguma casa que lhe oferecesse atenção e guarida. Ali ela proseava, interagia, se considerava como integrante da família, e aquele lar como seu próprio. Se ninguém lhe importunasse, ela ali permanecia dias a fio. Mas, caso alguém quisesse se livrar da sua presença, bastava oferecer-lhe uma vassoura ou qualquer outro instrumento de trabalho doméstico. Ela saía esbravejando, esconjurando e amaldiçoando a todos. A propósito do ócio, ou tempo livre, ela precedeu ao sociólogo italiano, Domenico De Masi.

Foto de Dona Cebola.

Realmente, Cebola tinha pavor de trabalho e protestava, veementemente, contra a mais valia, causa da mão-de-obra escrava. Por outro lado, cometia a injustiça de querer comer sem trabalhar, contrariando a máxima paulina que diz: “se alguém não quiser trabalhar, não coma também.” Portanto, quando alguém lhe pedia para executar algum trabalho doméstico, tal como lavar roupa, fazer faxina ou algo do gênero, ela recorria ao repertório de palavrões em máxima escala. E sempre acompanhados de gestos obscenos, ao tempo em que se retirava da residência . Comumente ela usava dois métodos: primeiro, reagia agressivamente ao convite para o trabalho, xingando a quem propôs. Segundo, se a sua reação não produzisse o efeito desejado, ela desabava a chorar, tal qual uma criança. Fato é que, invariavelmente, ela era impiedosamente fustigada.

Outro aspecto que “Cebola” abominava era o hábito da higienização pessoal. Este era o último recurso que muita gente usava contra ela, principalmente quando queriam expulsá-la de casa. Para irritá-la, ofereciam-lhe toalha e sabonete, indicando o rumo do banheiro. Isto era o bastante para ela protestar e, com muita fúria, evadir-se do local a toda pressa.
Porém, embora “Cebola” oscilasse no seu humor, era uma pessoa atenciosa, capaz de fazer amizade e conversar com as pessoas. Nos seus momentos de lucidez, dirigia-se aos homens chamando-os de compadres, e às mulheres, por comadres. Era respeitosa e tratava a todos com deferência. Se houvesse reciprocidade, desenvolvia um querer bem, aliado a uma fidelidade sem limites. Que o diga Paulo Abreu, ele que sempre a teve na máxima conta, sendo por ela reverenciado e aclamado.

Texto de Antonio Rocha.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Esse texto me fez recordar a minha infância. Ah, quantas lembranças boas! Correntina de outrora era bem melhor. Claro que o progresso é necessário, porém a gente era tão simples, sem maldades que gostava até das pessoas tidas como “doidas” , mesmo que as vezes sentia medo. Elas fazem parte da história dessa terra linda chamada Correntina.
    Quanta saudade!

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