Publicado em 02/07/2025 às 17h15.
O SAMBA DE RODA DA DONA SÚ.
Por Antonio Rocha.
Há coisas que nos custa sair da memória. Uma delas é a imagem de uma baiana, no mínimo carismática. Entre o Bairro do Buracão e o Cemitério da cidade, morava dona Sú. Ela, o seu esposo Miguel, os seus filhos e os santos. Todos viviam sob a sua guarda, isto é, sob a sua responsabilidade. Às vezes, dona Sú guardava os santos, às vezes ocorria o contrário. Ela sempre foi uma grande líder, daquelas que sabem fazer a conciliação entre o sagrado e o profano. Uma senhora que conseguia agradar aos vivos e aos mortos. Mulher das novenas, das rezas e dos ofícios, ritualizava todas as tradições da fé católica, das crenças e das tradições do seu povo.



Coincidentemente, era por ali que o santo subia, justo ali entre o Cemitério e o Brega, onde se misturavam prazer e dor, sofrimento e libertação. A partir dali é que ela comandava a redondeza, rezando e sambando. Tal prática tornou-se um evento eclético famoso, resultante da mescla entre a reza e o samba de Sú, no alto do cemitério. Para lá acorriam multidões, nobres e plebeus, uma demonstração do caráter democrático da festa, todavia, organizada pelos pobres. Para o início das atividades sacras e profanas, dona Sú recorria, sempre, às suas aliadas de fé e de labuta: Josininha, Tonha Gavião, Justina cega, Rosinha Cubú, Joaquina e outras. Juntas, recitavam a longa reza da novena e do Ofício de Nossa Senhora, incensando a bandeira e o pau do mastro, tudo em honra ao santo, cuja imagem quase tocava o Céu. Tocar o céu é um modo de dizer, porque o céu era tocado mesmo pelas preces e súplicas dos penitentes.



Depois de fincado o mastro e concluída a oração, seguia o samba de roda acompanhado de farofa, vinho e cachaça. O foguetório ocorria à solta, iluminando o céu sobre a escura noite. Os homens cantavam e as mulheres respondiam. Puxando pela memória, ainda me recordo de alguns refrões como, por exemplo, de um fragmento que assim rimava: “arriba a saia muié, não deixe a saia moiá, a saia custou dinheiro, dinheiro custou ganhar”; outro verso, cantado por Tonha Gavião, assim dizia: “ei piaba, ei piaba eu não sou piaba não…”

Era dessa forma que, embalados por essas músicas, a noite tornava-se uma criança. Tudo seguido de muitas falas e cocos cantados em desafios improvisados. Muitas umbigadas, entre cortinas de poeira, durante o samba de roda, ao som das palmas e tambores. O término dependia somente do tamanho da noite e da resistência das pernas. O sol subia e a poeira baixava-se. Os cabelos? Estes estavam duros e secos, coloridos pelo barro, sedimentado pelo suor.


Transcorrida a festa, dona Sú voltava a anunciar, por todos os cantos, a derrubada do mastro, ocasião propícia ao reencontro da multidão, da reza e da festa. Encerrados os festejos, todos aguardavam ansiosos pelo próximo evento, implorando aos santos vida e saúde para o ano vindouro. E assim, Sú foi firmando-se como liderança, e a periferia de Correntina ganhando destaque e fama. Sú de Miguel foi uma mulher guerreira que, sozinha, terminou de criar os filhos, disciplinou o bairro e se impôs como autoridade. Para descrevê-la, eu diria que Sú era uma senhora alta e forte de corpo e alma; falante e decidida. Impôs-se pela reza e a festa e, com naturalidade, agregou pessoas, construiu cultura e firmou tradição.