Publicado em 27/11/2024 às 6h12

RAIMUNDA RAPOSA: A MULHER QUE AGIA COMO DELEGADA CIDADE.

Por Antonio Rocha.

 

Foto de Raimunda Raposa

O universo é povoado de vários mundos, dentre os quais, o nosso. Aliás, em matéria de mundo, cada um tem o seu próprio. Ou, sem querer transbordar-me para o exagero, cada um tem seu mundo à parte, construído, muitas vezes, a partir das próprias atitudes e escolhas. Trago à tela para o para conhecimento do (a) leitor (a), uma ilustre senhora, que viveu em Correntina tempos atrás. Sabe-se que ela, quando estava agitada, levava consigo a cidade inteira. Assim era a vivida e intrigante Raimunda Raposa, portadora de alguma deficiência mental. Nessa condição, às vezes amada, às vezes temida, principalmente pelas crianças que, temendo-a ou reverenciando-a, eram paradoxalmente atraídas por ela, quem sabe devido à uma incontida curiosidade.

De comportamento incomum e intempestivo, no pico máximo do seu agito mental, Raimunda agia como se fosse a delegada do lugar. Sobretudo quando retornava à cidade de Correntina, após suas andanças por outras paragens. Chegava ocupando ruas, chamando à atenção da população com barulhos e alaridos. Assim, ela ia tomando diligências, consertando ali, estragando acolá, sempre esbravejando contra os passantes ou com quem lhe atravessasse o caminho. Era enérgica, de uma vitalidade impar. Uma figura inclassificável, viandante do dia e da noite. Ora se perdia, ora se achava. Aparecia repentinamente, produzindo barulhos por tudo quanto era lado. E, do seu jeito, ia apavorando a uns, arrancando risos de outros e sentenciando quem lhe afrontasse.

Mas Raimunda tinha lá o seu instinto de mãe, afinal gerou um casal de filhos, denominados, respectivamente, de Antônio e Um-a-Um. Isto mesmo que você está lendo!! Nunca se soube do verdadeiro nome de Um a Um. Era uma menina que já nascera com limites no aparelho fonador, e tampouco conseguia pronunciar as apalavras com clareza. Esse senso materno, esse jeito de embalar e ninar uma criança, fez com que Raimunda não perdesse o seu olhar de genitora, apesar da aguda perturbação mental. A despeito dos seus ríspidos modos, ela sabia cuidar das próprias crias, conduta extensiva às crias aleias. Há testemunhos de que Raimunda chegava ao ponto de ralhar as mães e os pais que, inadvertidamente, deixavam os seus bebês chorando nos berços e os filhos maiores sozinhos, submetidos aos perigos das ruas. As reprimendas de Raimunda eram desencadeadas pelo seu instinto materno, naturalmente protetor. Exatamente por isso, um olhar para além da presumida loucura se torna imperioso.

Acresce-se a isso o fato de Raimunda se comportar, perante os animais, de forma admiravelmente protetora. Não suportava vê-los presos, que imediatamente os desprendia, fosse de postes ou de árvores. Costumava soltar o gado do curral, escorraçar os porcos do chiqueiro, aplicando a sua filosofia de proteção ao meio ambiente. Outro traço marcante dessa senhora era o seu lado religioso que, aflorando quase sempre na semana santa, levava-a a adentrar os cemitérios para realizar as suas preces e súplicas a favor dos mortos. Todavia, há notícias de que, geralmente, Raimunda ia além das preces, em suas traquinagens. O que, numa linguagem jurídica, poder-se-ia caracterizar como crime de vilipendio. Correram inclusive boatos, atestando que Raimunda, portando um crânio humano, entoava o jargão que dizia: “Caveira quem lhe matou? A língua!”

Embora eu tenha ressaltado a genialidade e o afloramento da bondade de Raimunda, não posso, por outro lado, deixar de refletir sobre o seu sofrimento mental e a complexidade do seu mundo particular. Uma realidade incompreensível e impenetrável. E, a propósito, tão difícil de qualquer intervenção por parte dos que se auto-denominam “normais.”
Foi assim que Raimunda Raposa foi enchendo-nos de filosofias. Filosofia do cuidado, filosofia existencial, comportamental e social. Ou seja, reflexão ética e avaliação moral e do comportamento. Daí a sua pergunta retórica: Caveira quem lhe matou? Respondia ela própria: A língua…! Realmente, é preciso um outro olhar, para uma melhor compreensão dos nossos doentes mentais.

Antonio Rocha.

 

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