Reminiscências do antigo comércio em Correntina

Teoney Araújo Guerra

A transformação econômica ocorrida na nossa querida Correntina nas últimas décadas afetou de forma impiedosa a sua paisagem: descaracterizou as ruas, e o casario antigo nas suas fachadas e telhados, entre outros impactos no seu patrimônio histórico. Mas isso é quase nada, se compararmos o que foi mudado na nossa cidade no aspecto socioeconômico.

Crédito: Acervo da Família Guerra.

O comércio, em especial, perdeu muito da sua essência, após o fechamento de inúmeros pequenos estabelecimentos comerciais, negócios familiares então existentes, que eram base dessa atividade. No aspecto físico, ficou para trás no tempo o cenário das pequenas lojas e “vendas” que ocupavam, quase sempre, cômodos de duas portas, localizados na frente das residências dos próprios comerciantes, e com elas, o velho balcão e a prateleira de madeira; a folhinha, nela pendurada, presa por um prego, e o caderno do fiado. No aspecto anímico, perdeu-se muito da história, de costumes que estavam, há muito, talvez mais de um século, enraizados no modo de vida dos comerciantes e da população.

Mas ainda sobrevivem na memória de que viveu na nossa cidade lá pelos fins dos anos 1940, nos anos 50 e o final da década de 1960, lembranças do ambiente de baixa renda e pobreza, então tão comum, que levava muitas famílias a vender, na própria residência, iguarias como doces, biscoitos e bolos, para obterem uma renda qualquer. Para atrair os compradores, esses petiscos eram expostos em vasilhas de vidro transparentes, sobre uma mesa que era colocada na sala, em frente à porta da casa, que ficava aberta durante todo o dia.

Crédito: Acervo da Família Guerra.

Na casa de dona Nicinha, era vendido o bolo de arroz, de manhã cedinho, quente, quase “pelando”. Em algumas residências se vendia o cuscuz, também para o café de manhã, e na rua o comércio informal, no decorrer do dia, onde se vendiam os pirulitos, broas e biscoitos.

A forma antiga, quase medieval, como se comercializavam as carnes, certamente ainda faz parte da memória local. Nos açougues, também localizados nas residências*, as mantas de carne e partes do gado ou do suíno eram penduradas sobre estruturas de madeira – espécies de varais instalados nas portas desses estabelecimentos -, expostas ao sol, ao vento, à poeira e ao contato das moscas; os ossos, costelas e outras partes ósseas dos animais eram cortados com machados, no cepo de madeira, que ficava ali, na calçada, exposto ao sol, aos mosquitos e às eventuais lambidas dos cachorros que rondavam o local. Com parte da carne suína se fabricava a linguiça utilizando tripa do próprio porco. Porcos que, muitas vezes, eram criados no próprio quintal do açougueiro e ali abatidos. Na época, nesses estabelecimentos se vendiam outros produtos, como o sal, o fósforo, o querosene – em muitas residências, especialmente na zona rural, não havia a luz elétrica -, o açúcar cristal, o açúcar de forma – hoje conhecido como açúcar mascavo – e o sabão caseiro, que eram fabricados na cidade, de forma artesanal.

Acervo do historiador Helverton Baiano( Valnir de Vercim)

Tempos em que a atividade comercial demandava, quase que exclusivamente, a mão-de-obra familiar, por isso e diante do “paradeiro” que ocorria no horário do meio-dia, os comerciantes suspendiam temporariamente, nesse horário, as atividades, para o almoço. Habito que ainda persiste continuado por alguns poucos comerciantes mais antigos, mas que está “com os dias contados”.

No comércio de então, dezenas de lojas vendiam os tecidos: a loja de seu Leônidas, a de Joaquim de França, a de Josa, a de Odílio França, a de Ozano, a de Elias França, a de Zé Rocha, a de Alfredim, a de Milson, a de Melson, entre tantas outras. Época em que as roupas prontas, industrializadas, ainda não eram vendidas no comércio local. As pessoas compravam os tecidos e iam a uma modelista/costureira se mulher e a um alfaiate se homem, a quem encomendava a confecção da roupa. Modelos exclusivos, feitos sob medida, que eram escolhidos nas revistas especializadas de moda, que não podiam faltar nos ateliês de costura e nas alfaiatarias.

Crédito: Grupo Relíquias de Correntina.

Algumas dessas lojas de tecidos vendiam também sapatos, botas, sandálias… outras, como a de Joélio Ramos e irmãos vendiam exclusivamente os calçados. A de Elias França era também o seu escritório, onde ele comprava o algodão, então produzido por pequenos agricultores do município.

O comércio na cidade era incipiente, e dispunha de poucas opções em vários segmentos. Loja de móveis, por exemplo, só havia a de Joaquim Brotim, um estabelecimento chique. Armarinho era outro segmento que, pelo que me recordo, havia apenas um, o de Rafael Rocha. Algumas lojas comercializavam “quase tudo”, se não me falha a memória, eram denominadas de “lojas de miudezas”, como a de Militino, que vendia de artigos de armarinho a anzóis e outros produtos para pesca; pincéis, lixas e alguns materiais para construção; pilhas para rádio, panelas, e até veneno contra traças.

Crédito: Grupo Relíquias de Correntina.

As farmácias: a de João Rêgo e a de Pedro Guerra – as mais antigas – eram os “consultórios médicos”, numa época em que, sem médicos na cidade, as doenças eram tratadas pelos farmacêuticos práticos e donos desses estabelecimentos, que, muitas vezes, iam à casa do enfermo fazer o atendimento.

Crédito: Grupo Relíquias de Correntina.

 O segmento de bebidas era composto pelas sorveterias, que eram também bares, os bares propriamente ditos, e os estabelecimentos menores, que eram denominados popularmente de “vendas”.

A sorveteria de Zeferino e a de Seu Anjo vendiam os picolés e sorvetes que adoçavam os paladares, especialmente das crianças. A de Zeferino em um prédio mais bonito, na praça da Igreja Matriz, com o seu salão amplo e dotado de várias portas, por isso, bem arejado e ventilado; as mesas e cadeiras de fórmica; um ambiente mais atraente, elegante, chique. A de Seu Anjo era mais popular.

Crédito: Grupo Relíquias de Correntina.

Os bares, diversos, espalhados por várias ruas da cidade, como o Elite, de Reinaldo Alcântara e o Diplomada, de Guerrinha. Reinaldo que foi o precursor do que é hoje o Ranchão, ao instalar, no finalzinho da década de 1960, um bar na ilha então sem utilidade. Para os clientes acessarem o local sem terem que atravessar o braço do rio, o comerciante estendeu dois troncos de árvores ligando a margem direita do rio Correntina à ilha – foi a base da ponte mais antiga que ainda há -, e nela construiu um rancho de palhas sobre quatro forquilhas, onde passou a comercializar bebidas nos sábados e domingos, durante o dia**.

Crédito: Maria do Socorro.

Nas “vendas” se comercializavam especialmente as bebidas quentes: cachaças, conhaques, os vinhos compostos – cinzano, cortezano, caldezano, jurubeba -, e uma infinidade de outras bebidas com teor alcoólico mais elevado. Em alguns desses pequenos negócios não havia, sequer, uma geladeira. Dessas “vendas”, são lembradas a de Quinca Baé, a de Temisto (Temístocles), a de João de Margarida, a de Detim, e a de Seu Félix (Pereira Barbosa). Nelas se vendiam também o doce de leite, que muitos chamavam de tijolo, que era cortado em pequenos pedaços; o fumo de rolo, o fósforo, o sabão, a vela, o querosene, o sal e o açúcar, entre outros produtos que, ao faltar nas residências no dia a dia, eram comprados em unidades para suprir àquela necessidade imediata. Aliás, de forma geral, era assim que esses itens de uso diário eram comprados. Em maiores quantidades, somente os gêneros alimentícios que eram adquiridos na feira, aos sábados, para “durar” a semana: o arroz, o feijão, a farinha, a tapioca, o doce, o frango e os ovos – que muitas famílias tinham do próprio quintal -, verduras e legumes: a abóbora, a mandioca, a batata, o maxixe e o quiabo. Frutas da época, nunca faltavam: o pequi, o umbu, o caju, a pitomba, o tamarindo, etc. Na feira também se compravam – ainda hoje, porem, menos – as vassouras, esteiras, as colheres-de-pau e as panelas de barro, que eram muito utilizadas nas cozinhas, e a lenha para os fogões – os fogões a gás eram raridade aqui, naquela época. Feira que movimentava a cidade nos sábados, com centenas de carros de bois, cavalos, jumentos, burros e mulas transitando nas ruas da cidade – eram os meios de transporte e locomoção de cargas e pessoas, da roça para a cidade. Era um movimento tão intenso, que com frequência havia atropelamentos de pessoas por animais.

Crédito: Grupo Relíquias de Correntina.

Tempos em que os correntinenses tinham as suas bebidas exclusivas e naturais: a gengibirra, a “cerveja de gengibre” – oriunda da Itália – e a gasosa – preparado composto da garapa de cana, misturada ao ácido anidrido carbônico -, o refresco preferido das crianças.  A gengibirra, produzida principalmente pelo seu Dió, e a gasosa, pelo Paulo Gasoseiro.

Essas são algumas reminiscências do que foi a nossa querida Correntina, uma cidade provinciana e minúscula “dividida ao meio” pelo Riacho Vermelho, que hoje, é um centro urbano muito maior e mais desenvolvido, que se expandiu por onde era o “outro lado do rio”, o latifúndio da Paróquia, e até onde era a Extrema. Cresceu também por onde era a fazenda de Jaime Moreira e a Chácara do Major Félix; na saída para Santa Maria, até chegar onde era o Barrocão; daí continuou a expansão – para o oeste – até onde era o Cotovelo e por onde era a fazenda de Rafael; além do Cancelão, até onde era a  de fazenda de Odílio, e hoje, o centro urbano já se aproxima do Morro do Estreito.

O comércio, com o seu desenvolvimento, já atrai investimentos “de fora”, com novos negócios; filiais de redes de lojas regionais.

Crédito: Grupo Relíquias de Correntina.

O desenvolvimento tão intensamente almejado naquele tempo chegou, e Correntina se transforma num processo contínuo e perene. Porém, por mais que ela se desenvolva e se transforme nos enchendo de orgulho e satisfação, não há como deixar de sentir também, no fundo, dentro de cada um de nós, um pouquinho que seja desse sentimento acridoce que com frequência nos remete ao passado e nos emociona: a saudade!

 *O Mercado Municipal – antigo – foi construído no início da década de 1960, no segundo mandato do prefeito Pedro Guerra, porém, a quantidade de açougues era pequena, apenas seis, não permitindo assim, que todos os comerciantes de carne fossem transferidos para lá.

**O Ranchão, como ponto turístico, com toda a infraestrutura na ilha, inclusive o cais nas bordas e o enchimento das partes mais baixas com areia, foi construído em 1973, na primeira administração do prefeito Guerrinha.

1 COMENTÁRIO

  1. Memória aguçadíssima do articulista, que retoma com muita precisão os tempos passados do comércio correntinense, sua forma e estilo e a vida de quem nele está ou estava inserido. Parabéns por nos compartilhar essa viagem ao passado que nos proporciona compreender melhor o presente e nos possibilita enfrentar melhor o que vem no futuro.

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