Publicado em 30/01/2025 às 14h47.

Foto: Acervo de Antonio Rocha.

NEM TODA JANELA ABRIGA UMA FOFOQUEIRA!

Por Antonio Rocha.

Debruçada sobre a janela nas horas vagas, ou após executar todos os afazeres domésticos, escolares e religiosos, ali sempre estava escorada na soleira, a Virgem da Janela. Era a Senhora da Palmatória de cedro, do Rosário de Maria, das Novenas e Ladainhas, das Festas de Lapinhas, dos Bordados e das Rendas, do Cultivo de Roseiras no fundo do quintal. Mas a sua vitrine, o seu rádio, a sua televisão, o seu sistema de comunicação, era mesmo a Janela que dava para a rua.

Uma Janela sem marcas de tinta, sem brilho, sem cor, surrada pelo tempo. Nela podia-se ver apenas as marcas de gordura, deixadas pelas suas mãos, de tanto manuseá-la. Desde criança, ainda no despertar para a vida, foi acometida de Asma. A partir de então, passava muito tempo reclusa e, nos tempos em que a crise atacava, ela se recolhia no recôndito de sua alcova, por dias e noites quase que intermináveis.

No seu quintal, junto às roseiras, multiplicavam-se os pés de zabumbas, espécie de planta medicinal que geralmente receita-se para auxiliar as vias respiratórias. Eram usadas em forma de cigarros, ou pelo processo de inalação do vapor extraído de suas flores.

Aquilo era o seu refrigério. Passada a crise quase fatal, ela voltava à vida, como se fosse uma espécie de ressurreição. Viveu assim, de crise em crise, durante toda a sua existência, com um pé na terra e outro no céu. Mesmo com todas as limitações de saúde, assistiu de pé, a morte de seu pai, de sua mãe, de uma de suas irmãs e do seu irmão. Este, sapateiro e exímio tocador de colher, nas horas ociosas.

O tempo passou e ela se viu sozinha, contando com a companhia apenas da janela, que continuava ali, sempre aberta. Quando não estava à janela, algum vizinho lhe espiava pelo vão e identificava a sua presença no interior da sala, sentada numa cadeira de balanço. Nas madrugadas, era comum os passantes avistarem uma luz acesa, a janela toda aberta e ela sem o mínimo receio de alguma visita inesperada. Quando isso acontecia, era sinal de que a crise asmática havia retornado. Ela se deitava e levantava-se, alternadamente, para tomar um arzinho na janela e, assim, ia revezando-se nas suas longas horas noturnas.

Dia e noite ela observava, não somente os sinais vitais do seu corpo, mas toda a movimentação da rua, e o vai e vem dos vizinhos. Sabia da vida noturna e diurna de todo mundo da comunidade. Dava notícia do ancião que adoecia, do bebê que veio à luz, da criança que se perdera, do amigo que partiu para longe, na noite anterior. Ela dava conta de tudo o que acontecia ao redor da vizinhança, e se alguém queria saber algo, reportava-se a ela. Era uma fofoqueira do bem.

Foto: Acervo de Antonio Rocha.

Perdão, quero dizer melhor, um verdadeiro Anjo da Guarda! Antes mesmo das técnicas de monitoramento pelos olhos artificiais das câmaras inteligentes, plantadas nas ruas e praças das cidades, havia os olhos e a atenção da Dama da Janela. Passei a compreender que nem toda janela abriga uma fofoqueira; há Janelas que podem abrigar, verdadeiramente, um Anjo Protetor.

Por conta dela, a rua era tranquila, ninguém ousava fazer algo errado, porque nada escapava aos seus olhos vigilantes e denunciadores. Ela protegia e aconselhava os jovens namorados, advertia as crianças quando erravam, prestava atenção às casas dos vizinhos ausentes, consolava os aflitos que espreitavam a sua janela. Era uma verdadeira Reserva Moral. Discreta, religiosa, prestativa, conciliadora, respeitosa, amiga.

Assim pode ser definida a minha primeira Professora. Nunca se casou e viveu tão somente para Deus e para a Comunidade. Sozinha, na casa deixada pelos seus pais, ali permaneceu até o final da vida, quando voou para o Paraíso Celestial, despedindo-se da Rua Félix de Araújo aos 75 anos de idade.

Texto de Antonio Rocha.

 

 

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