Publicado em 19/03/2022 às 21h21

SAGA DE ZIM

 (Hélverton Baiano)

Como Zim eu vim. Não sei pra quê vinga gente assim no mundo, fadada aos labirintos da pobreza extrema, inclusive de espírito para lidar com a grandeza e a crueza dele inerentes. Estou aqui pra fazer rastro, como tenho dito a torto e a direito, principalmente a torto. Cresci por insistência da sorte e também porque comigo veio uma insistência inexplicável que me fez teimoso e de teimoso vivo. Procurei tanger fome, desassossego, frio e precisão, com uma forcinha que Deus me deu e que procurei alimentar com uma nesguinha de insistência e menos ainda de coragem. Desde pequeno me conheço por Zim, mas meu nome é Joaquim. Ajeitaram o nome ao meu tamanho e quando comecei a mancar, por causa de tanto tropeço na vida e como parte da chacota do povo, acrescentaram um Panquinha.

Eu conheci Zim Panquinha já sem rumo, apesar de não saber se ele teve algum, algum dia. Era um pedaço de gente sem a menor serventia e vivia embriagado, escanchado nas pingas que um e outro pagavam para ele. Ninguém nunca o via sóbrio. Era um desmilinguido por natureza e se ajudava a procurar constante e diligentemente o fundo do poço. Só não passava despercebido porque enchia a paciência de todo mundo, até que alguém lhe pagasse uma cachaça para que reinasse uma trégua de minutos. Mais das vezes, vivia escornado, barba fiapenta por fazer e tripudiando de quem chegasse por perto.

Sabia que eu era realmente um zé ninguém e tinha certeza também de que não fui escolhido, a vida é que escolheu esse meu destino e eu não fiz força alguma para tomar um outro rumo. Logo cedo, a partir de quando eu ingressei no be-a-bá das letras, fiz essa leitura do mundo. E a convivência com a dificuldade me ajudou a encontrar esse caminho. Queria ser invisível. Só que, quando comecei a beber, a minha vida tomou um rumo diferente. Procurava todas as verdades que a vida mentia pra mim. As pessoas começaram a me ver do jeito que elas queriam me ver. A pinga abriu minha visão e acrescentou muito no meu jeito. Acho que não gostavam de mim, mas me enxergavam e até pagavam uma dose para se verem livres do meu incômodo.

Não adiantava a gente querer se desvencilhar de Zim Panquinha, que ele aparecia do nada para atazanar com pequenas ofensas que nunca passavam de palavras, às vezes incompreendidas, porque também adotava um vocabulário particular e escalafobético, que intrigava. Eu conseguia tirar grande proveito dele e muitas vezes até entabulei conversa, para saber um pouco mais de sua vida, e fiquei sabendo principalmente de suas desilusões com o mundo. Foi quando ele decidiu não ser mais invisível.

Tive todas as desilusões possíveis, para a realidade em que vivia e consegui reparar alguns erros, até quando não aguentei mais. Mas as maiores desilusões e que me jogaram nessa vida de cachaceiro foram as amorosas. Me apaixonei algumas vezes, apenas e tão somente para me machucar. Mulher nenhuma queria nada comigo, não chamava a atenção e nem era bonito para encantá-las. Também não tinha onde cair morto! Esses dissabores foram acumulando enquanto eu murchava e ficava tão pequeno que eu mesmo não conseguia me ver. Fui sumindo aos poucos e jogado aos parcos.

 

A gente percebia que Zim ia se definhando, se definhando e só era percebido quando pedia para pagarem uma pinga. Sua vida era de boteco em boteco e até sua visibilidade ia se apagando, virando silhueta. Era um ser diáfano vagando a esmo. Até para importunar sentia dificuldade.

Eu sentia que o mundo ia ficando cada vez menor. As coisas aconteciam pela metade ou nem aí chegavam. Minha visão turvara. Minha vida e nada eram a mesma coisa. Acho até que estava cheio de doenças, que a cachaça inveterada me fazia anestesiado e cada vez mais incapaz. Nem mesmo vi, nem o motorista percebeu, quando o caminhão veio de marcha à ré, e veio, veio, veio até me esmagar na parede do boteco de Seo Anjo. Daí em diante, eu não vi mais nada.

O motorista assustou-se com a gritaria das pessoas e só freou o caminhão quando já tinha batido na parede. Zim ficou preso entre a carroceria e a parede do boteco, estatelado, dependurado e com os olhos esbugalhados, durante umas quatro horas, feito um boneco de Judas açoitado para o inferno, num sábado de aleluia.

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